Abrimos o blog da Adega Almeida novamente para mais um enófilo compartilhar seus estudos e conhecimentos. Dessa vez, Alessandra Mendonça nos traz a explicação sobre a origem dos aromas de um vinho.
Como surgem os aromas nos vinhos?
Cheiro de cereja, de folhas molhadas, de couro? Uma das manifestações sensoriais mais encantadoras e de maior impacto no vinho são seus aromas.
Vamos partir do início e explicar como funciona o sentido do olfato: as partículas de cheiro (odoríferas) são percebidas na cavidade nasal, numa pequena área da mucosa, de poucos milímetros de extensão, onde se localizam as células nervosas responsáveis pela captação dos estímulos olfatórios.
E, para que tenhamos a percepção de um odor, é necessário que ele tenha um mínimo de intensidade, que depende de sua concentração, de sua pressão de vapor (os aromas são voláteis e assim alcançam a cavidade nasal) e de seu limiar de percepção olfativa, pois, alguns provadores são mais sensíveis a determinados cheiros e outros menos. Além disso, fatores fisiológicos, em relação à mucosa nasal, também podem modificar a percepção olfativa.
É importante registrar que só identificamos os aromas que conhecemos, ou seja, aqueles que estão presentes na nossa memória olfativa. Portanto, para que possamos identificar uma maior gama de aromas, precisamos treinar diariamente, e fazemos isso observando os aromas dos alimentos, dos ambientes, de tudo que nos circunda. É necessário saber dar nome às partículas odoríferas captadas pelo sistema olfativo. Muitas vezes, o cheiro é percebido pelo provador, mas ele não é capaz de recordar a que substância o aroma está relacionado. É quando usamos aquela velha frase: “este cheiro me lembra algo …”.
Assim, quando um vinho traz um aroma familiar, é comum que façamos analogia com algo conhecido, que possua característica aromática semelhante, e que utilizemos este termo para descrever aquela sensação. Este termo é chamado de descritor aromático.
Por exemplo, se analisarmos um vinho e sentirmos o aroma de “framboesa”, este será o descritor de aroma utilizado. Isso ocorre porque, contrariamente ao que sucede com outras sensações, não há recursos linguísticos para designar de forma absoluta os cheiros.
Quando falamos que um objeto é “vermelho”, não há a necessidade de recorrer à analogia (a um descritor) para que as demais pessoas compreendam o seu sentido, ou seja, podemos dizer: o “papel é vermelho”, pois se trata de uma definição clara, suficiente e comum à maioria das pessoas. Não há a necessidade de dizermos que o “papel tem cor de framboesa”.
Porém, se o papel apresentar um odor de framboesa, como não é conhecida a substância química que atribui este aroma à framboesa, é comum empregarmos o descritor: o “papel tem cheiro de framboesa”. Não existe, isoladamente, um “cheiro framboesa”, como também não existe “framboesa” no papel.
Podemos explicar parcialmente este fenômeno pela origem dos estímulos que despertam as sensações. Descrevemos a visão e a audição como sentidos “físicos”, enquanto, a olfação e a gustação, seriam “químicos”. No primeiro caso, os olhos e os ouvidos são estimulados, respectivamente, por ondas luminosas e sonoras. Além disso, a percepção das formas, distâncias, cores e intensidades é quase sempre a mesma para todas as pessoas.
Vamos imaginar que cada um percebesse essas características de uma maneira diferente. Atravessar uma rua movimentada seria uma tarefa praticamente impossível, veja: o semáforo que seria vermelho para uns, poderia parecer verde para outros; o ruído de um veículo que, aparentemente estivesse a 1000 metros, poderia, em realidade, estar a apenas 10m.
Por outro lado, os sentidos “químicos”, ou seja, os estímulos olfativos ou sápidos, são gerados por moléculas que devem entrar em contato íntimo com outras moléculas presentes na cavidade nasal ou nos receptores gustativos. No caso olfativo, as moléculas odoríferas devem ser pequenas e voláteis de modo que possam ser levadas pelo ar inspirado, e alcançar a nossa mucosa nasal.
Agora ficou fácil entender! Quando dizemos que um vinho tem aroma de “framboesa”, é porque as moléculas voláteis que se desprenderam do líquido são as mesmas, ou muito semelhantes, àquelas que são liberadas pelas framboesas. Vejam só, a “beta-ionona” é a substância responsável pelo aroma de “framboesa” nas framboesas, no “papel” e no “vinho”, usados como exemplos. Imagine se, ao apreciar um vinho com amigos, ao sentir o aroma, você dissesse: “sinto aqui o aroma de beta-ionona!”. Seria no mínimo engraçado, sem contar que você precisaria ter uma excelente memória para se lembrar deste nome.
Não chamamos estas substâncias químicas por seus nomes científicos no dia-a-dia, até por que seus nomes são complexos. Então, para identificar essas moléculas odoríferas, empregamos a analogia, o descritor aromático. Desta maneira, o provador dirá que o vinho apresenta aroma de “framboesa” e não de “beta-ionona”.
Outro ponto importante é que, a aquisição do repertório olfativo é uma experiência que muda de pessoa para pessoa, segundo sua educação e cultura. Logo, os descritores aromáticos empregados para determinadas substâncias químicas variam entre os indivíduos. Dessa forma, a sensação desencadeada pela “beta-ionona”, que desprende do vinho, pode ser decodificada de uma maneira diferente, não apenas como “framboesa”, mas também pelo nome de um perfume ou de um brinquedo contendo “beta-ionona” que o provador costumava usar ou brincar na infância, por exemplo.
Agora que sabemos que os aromas presentes nos vinhos se referem a substâncias químicas também presentes em outras substâncias que fazem parte da nossa memória olfativa, podemos retornar ao tema central e fazer uma nova pergunta: de onde vêm estes aromas?
Um bom vinho deve ter aromas facilmente perceptíveis, embora não necessariamente intensos. Os vinhos inferiores são fracos em aromas. Os grandes vinhos têm aromas intensos ou sutis, porém complexos. Destarte, os aromas são classificados, de acordo com a sua origem, em primários, secundários ou terciários (“bouquet”).
Aromas primários
São oriundos das próprias uvas e são diversas as variáveis que contribuem para sua formação, como: o tipo de solo, o clima, a variedade da uva, o método de plantio e o grau de maturação da uva.
Estes aromas permitem aos provadores saber qual foi a uva usada na elaboração do vinho. Em geral, os aromas varietais mais comuns são os frutados, florais e herbáceos.
Para efeito de curiosidade, apresento alguns dos compostos químicos que são responsáveis pelos aromas: terpenos, na uva moscato (aroma característico de uva); linalol, nos vinhos Muscadet e Marsala (floral, laranja); geraniol, na sauvignon blanc (rosas); terpinol, em outras uvas, que aporta aroma de cânfora; nerol, aromas de tangerina; entre outros.
Aromas secundários
São gerados durante os processos fermentativos e o estágio em madeira.
No caso da fermentação alcoólica, o fator determinante, é o tipo da levedura, pois diferentes tipos delas produzem aromas diversos. E o primeiro aroma a destacar é o de álcool etílico, que é um dos principais produtos da fermentação alcoólica, e que, devido à quantidade presente no vinho, é percebido facilmente no olfato.
Outros álcoois superiores são produzidos durante esta etapa. Alguns possuem aromas denominados gordurosos, oleosos ou de creme de amêndoas que, em doses elevadas, podem se tornar desagradáveis. Outros podem ter aromas agradáveis como os de rosas e cogumelos.
Outras das substâncias formadas são os ésteres (sais orgânicos), que, por seu baixo peso molecular, são voláteis e influenciam fortemente o aroma dos vinhos jovens contribuindo para seu caráter frutado, e, em geral, são considerados agradáveis, com algumas exceções. Seguem alguns exemplos de ésteres encontrados em vinhos:
- acetato de isoamila: tem forte odor de banana, frequentemente reconhecido no Beaujolais Nouveau e em outros vinhos de maceração carbônica;
- acetato de benzila: lembra o aroma de maçãs;
- acetato de etila: apresenta odor de esmalte de unhas e pode estar presente nos vinhos botritizados, pois as microperfurações causadas pelo fungo na uva permitem a penetração da bactéria acética, que transforma o etanol em ácido acético, que gerará o acetato de etila.
Outra classe de substâncias, responsável por aromas secundários, são ácidos orgânicos, os chamados ácido graxos de cadeia curta que, em decorrência de seu baixo peso molecular, também são voláteis.
Dentre eles, está o ácido acético que, em baixa quantidade (abaixo de 300mg/l), não é reconhecido e faz parte da complexidade do vinho. Porém, se a quantidade aumentar por algum motivo e ficar acima desse limite, passa a ser um defeito. Quando isso ocorre, geralmente se fala que o vinho está avinagrado. Outros ácidos dessa classe são o fórmico, de odor pungente; o propiônico, com odor de gordura; e o butírico, com cheiro de manteiga rançosa.
As leveduras ainda podem aportar diversos outros aromas, como os de maracujá, arruda e folhas de tomate, típicos da uva sauvignon blanc.
Muitas outras substâncias, que também são produzidas nesta etapa da elaboração, são responsáveis por outros aromas frutados, florais, de especiarias, entre outros.
Depois da fermentação alcoólica, outra fermentação pode ser realizada, sobretudo nos vinhos tintos, mediante a ação de bactérias láticas: a chamada “fermentação malolática”, que, além de realizar uma desacidificação do vinho, produz aromas que contribuem com a complexidade da bebida.
O aroma típico produzido pela fermentação malolática é o de manteiga (diacetil). Aromas florais e frutados, amanteigados e de mel podem aumentar nesta etapa, enquanto os aromas herbáceos diminuem. As bactérias lácticas também formam ésteres de aromas frutados, finos e agradáveis.
A fermentação e/ou o amadurecimento em barricas também podem ser um valor agregado ao vinho. Por outro lado, não devem ser o protagonista. Os aromas amadeirados não devem apagar os demais aromas presentes no vinho.
E como um barril de carvalho pode aportar aromas ao vinho? Não parece, mas são vários os agentes: a espécie e a idade das árvores de onde serão extraídas a madeira, o entorno geográfico, os poros da madeira, o secado, o montado e o tostado interno das barricas, dentre outros fatores, determinarão os aromas que serão cedidos ao vinho ou formados dentro do recipiente.
Como podemos imaginar, dentro da barrica ocorre a interação entre o vinho, a madeira e a pequena quantidade de oxigênio que o barril permite que passe através de seus poros, de modo que aconteça a oxidação parcial de alguns compostos aromáticos e, consequente, o aparecimento de pequena quantidade de aldeídos. São muitos os aromas adquiridos e produzidos nesta instância, formando o chamado aroma de oxidação.
As barricas de carvalho, ao serem construídas, recebem uma queima a fogo, a torra, em toda superfície interna, e este processo é conhecido como “tostado interno”. Isto visa impedir que o vinho tenha contato direto com a madeira crua. De outro modo, haveria inclusão de excesso de aromas próprios do carvalho, ao vinho. Essa tostadura possui graus diferentes (leve, média, média alta e forte), e os diferentes compostos na superfície tostada transmitirão aos vinhos aromas como caramelo, café, chocolate, baunilha, cravo, canela, defumado, noz do coco, madeira carvalho, animal, fumaça (fenóis voláteis), especiarias (lactonas), etc. São aromas que enriquecerão a complexidade aromática do vinho.
Aromas terciários
São aqueles que se desenvolvem ao longo dos anos, em vinhos com potencial de envelhecimento em garrafa, na ausência de oxigênio (envelhecimento redutivo). Esse conjunto de aromas complexos formados durante a evolução do vinho no tempo é conhecido por “bouquet”.
Seu desenvolvimento é acompanhado pela perda dos aromas varietais e frutados. Assim, a longa guarda do vinho deve trazer complexidade aromática e maciez para compensar essa perda. Portanto, é fácil concluir que um vinho jovem só possui aromas primários e secundários, ou seja, não tem “bouquet”.
Como o tempo é responsável pela formação do “bouquet”, é importante levar em conta o ciclo de vida de cada vinho, o que depende de suas características. Passado esse momento, o vinho poderá ficar decrépito e provavelmente apresentará alguma contaminação, oxidação ou outra alteração.
Durante o processo de envelhecimento do vinho, principalmente o realizado em garrafas, os aromas sofrem mudanças notáveis por reações biológicas ou físico-químicas.
Em geral, os aromas frutados e florais tornam-se mais complexos. Alguns ésteres são perdidos e outros são formados. O mesmo acontece com diferentes terpenos, responsáveis pelos aromas florais.
O vinho perde as características da sua juventude, seu frescor, e ganha outros aromas mais complexos, como compota de maçã, frutas secas, tabaco, alcânfora, cogumelo, trufas.
Nos vinhos brancos aromáticos, a perda de terpenos e o aparecimento de óxidos, é característica. Esses compostos têm limiar de percepção mais alto e características aromáticas diferentes. Assim, o óxido de linalol apresenta aroma de eucalipto, ao invés de aroma floral do linalol.
Outros processos também podem gerar aromas terciários. Um deles é a hidrólise de substâncias aromáticas ligadas à glicose. Com o envelhecimento, este processo libera moléculas aromáticas, como os fenóis voláteis. Paralelamente, a degradação dos carboidratos do vinho dá origem a compostos altamente aromáticos como o aldeído 2-furfural, com seu odor de caramelo. Outra molécula que aparentemente tem papel importante na formação do “bouquet” é o dimetilsulfeto. Ele é formado pelas leveduras a partir de precursores como os aminoácidos que contêm enxofre. Em concentrações altas, seu odor é repugnante, mas em baixas concentrações confere complexidade ao vinho, sendo o descritor aromático da trufa negra.
Enfim, a principal característica que diferencia um grande vinho de um mais simples: é sua capacidade de evoluir, de desenvolver um conjunto de aromas, após permanecer retido dentro da garrafa por meses, anos, décadas. São estes aromas que surpreendem e seduzem seus apreciadores.
Bem, depois de descobrir como funciona a magia dos aromas no vinho, só nos resta abrir uma boa garrafa e apreciar seus espetaculares e inebriantes aromas: tim-tim!
Sobre a autora:
Alessandra Mendonça é amante dos vinhos há bastante tempo, mas começou a estudar profissionalmente sobre o assunto em 2014.
Sua formação inicial é em Engenharia Mecânica e Matemática, sendo Mestre em Administração Tributária, na Espanha, e também em Engenharia Mecânica, mas foi no vinho que encontrou sua satisfação pessoal.
Formou-se no Curso de Extensão Preparatório de Sommelier, oferecido pela Associação Brasileira de Sommelier – ABS/DF, em parceria com a União Pioneira de Integração Social – UPIS.
Pela ISG (International Sommelier Guild), em parceria com a Sommelier School, possui as certificações Intermediate e Advanced Wine Certificate Course.
Pela WSET (Wine & Spirit Education Trust), em parceria com a Enocultura, possui as certificações WSET Level 1 e Level 2 (pass whith Merit).
Visitou mais de 80 vinícolas, algumas vezes como turista, outras como profissional do vinho, tanto no Brasil, como na Argentina, Chile, Portugal, Espanha, Itália e França.
2 Comments
Que artigo maravilhoso! Uma verdadeira aula.
Parabéns à autora. Demonstra conhecimento e sensibilidade.
Parabéns !!! Texto claro, didático e bem explicado. Adorei! Tim-tim!